Aqui estou de joelhos, agradecido, contrito,
aguardando sua benção.
Quantas vezes com a alma ferida, com o coração
irado, com a mente entorpecida pela dor da injustiça eu clamava por vingança, e
Tu, oculto lá no fundo do meu Eu, com bondade compassiva me sussurravas:
"ESPERANÇA".
Quantas vezes desejei romper com a humanidade,
enfrentar o mal com maldade, olho por olho, dente por dente, e Tu, escondido em
minha mente, me dizias simplesmente:
"Sei que a maldade e a traição ferem o
coração, mas, responder com ofensas, não lhe trará a solução. Pára, pensa,
medita e ofereça-lhe o perdão. Eu também sofri bastante, eu também fui
humilhado, eu também me revoltei, também fui injustiçado.
Das savanas africanas, moço, forte, livre, num
instante transformado em escravo acorrentado, nenhuma oportunidade eu tive. Uma
revolta crescente me envolvia intensamente, porque algo me dizia que eu nunca
mais veria minha Aruanda de então, não ouviria a passarada, o bramir dos
elefantes, o rugido do leão; minha raça de gigantes de que tanto orgulho
tivera, jazia despedaçada, nua, fria, acorrentada num infecto porão.
Um ódio intenso o meu peito atormentava, porque
Oyá não mandava uma grande tempestade? Que Xangô com seus raios partisse aquela
nave amaldiçoada, que matasse aquela gente, que tão cruel se mostrara, que até
minha pobre mãezinha, tão frágil, já tão velhinha, por maldade acorrentara. E
Iemanjá, onde estava que nossa desgraça não via, nossa dor não sentia, o seu
peito não sangrava? Seus ouvidos não ouviam a súplica que eu lhe fazia? Se
Iemanjá ordenasse, o mar se abriria, as ondas nos envolveriam; ao meu povo ela
daria a desejada esperança, e aos que nos escravizavam, a necessária
vingança.
Porém, nada aconteceu, minha mãezinha não resistiu
e morreu; seu corpo ao mar foi lançado, o meu povo amedrontado, no mercado foi
vendido, uns pra cá, outros pra lá e, como gado, com ferro em brasa marcado.
Onde é que estava Ogum? Que aquela gente não vencia? Onde estavam as suas
armas, as suas lanças de guerra? Porém, nada acontecia, e a toda parte que
olhava, somente uma coisa via: terra.
Terra que sempre exigia mais de nossos corpos
suados, de nossos corpos cansados.
Era a senzala, era o tronco, o gato de sete rabos
que nos arrancava o couro; era a lida, era a colheita que para nós era estafa,
para o senhor era ouro. Quantas vezes, depois que o sol se escondia, lá no
fundo da senzala, com os mais velhos, aprendia que no nosso destino no fim não
seria sempre assim, quantas vezes me disseram que Zambi olhava por mim.
Bem me lembro uma manhã, que o rancor era grande,
vi sair da casa grande a filha do meu patrão. Ingênua, desprotegida, meu
pensamento voou: eis a hora da vingança, vou matar essa criança, vou vingar a
minha gente, e se por isso morrer, sei que vou morrer contente.
E a pequena caminhava alegre, despreocupada, vinha
em minha direção; como a fera aguarda a caça, eu esperava ansioso, minha hora
era chegada. Eu trazia as mãos suadas, nesse momento odioso, meu coração
disparava, vi o tronco, vi o chicote, vi meu povo sofrendo, apodrecendo,
morrendo e nada mais vi então. Correndo como um possesso, agarrei-a por um
braço e levantei-a do chão. Porém, para minha surpresa, mal ergui a menina uma
serpente ferina, como se fora o próprio vento que fere o espaço, errando por
minha causa; o seu bote foi tão fatal, tudo ocorreu tão de repente, tudo foi de
forma tal, que ali parado eu ficara, olhando a serpente que sumia no matagal.
Depois, com a criança em meus braços, olhei meus
punhos de aço que a deviam matar... olhei seus lindos olhinhos que insistiam em
me fitar. Fez-me um gesto de carinho, eu estava emocionado, não sabia o que
falar, não sabia o que pensar. Meus pensamentos estavam numa grande confusão,
vi a corrente, o tronco, as minhas mãos que vingavam, vi o chicote, a serpente
errando o bote... senti um aperto no coração, as minhas mãos calejadas pelo
machado, pela enxada, minhas mãos não matariam, não haveria vingança, pois meu
Deus não permitira que morresse essa criança.
Assim o tempo passou, de rapaz forte de antes, bem
pouca coisa restou, até que um dia chegou e Benedito acabou...
Mas, do outro lado da morte eu encontrei nova
vida, mais longa, muito mais forte, mais de amor e de perdão, os sofrimentos de
outrora já não importam agora, por que nada foi em vão...
Fomos mártires nessa vida, desta Umbanda tão
querida, religião do coração, da paz, do amor, do perdão".
Escrito por
Pai Ronaldo Linares em 20 de Outubro de 1964; entregue em mãos, por ele, ao JUS
(Jornal de Umbanda Sagrada) e publicado em Maio de 2005.
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